Juventude

Uma introdução para que se possa falar de uma certa parcela da juventude...*

Sabemos que as interrogações e respostas sobre quando e como “ser” criança, jovem ou adulto variam infinitamente nas diferentes culturas e, com o passar do tempo, no interior de uma mesma cultura. Regras socialmente construídas definem em que momento, e por meio de quais rituais de passagem, muda-se de uma fase para outra. Na cultura ocidental, a sequência infância/adolescência/juventude/maturida de foi-se construindo e ganhando contornos sociais e jurídicos ao longo da história. Neste percurso, a atribuição de direitos e deveres para as diferentes faixas etárias refletem e revelam relações econômicas e políticas inseridas em alianças e disputas sociais.

Contudo, mesmo imbuídos de todos os ensinamentos relativizadores da antropologia, muitas vezes acabamos por naturalizar as “fases da vida” como se fossem “universais”, exclusivamente ancorados na crua objetividade de um ciclo biológico. Afinal, como também vivemos pessoalmente os papéis de filhos e pais, projeções interessadas e os conflitos geracionais sempre estão a desafiar nossa neutralidade científica.

Não por acaso muito se escreve sobre juventude. Mas os trabalhos mais consistentes são os menos substantivistas: ser jovem é sobretudo uma maneira particular de estar no mundo. Ambivalências e ambiguidades estão sempre contidas na ideia de “juventude”. Por um lado, como afirmam Margullis e Arruti (1996), há uma estetização que coloca a juventude como paradigma do desejável. É por isso que os discursos sobre juventude centram a análise nos setores que desfrutam da “moratória social” para “aproveitar a vida”. Mas, por outro lado, ao falar da “juventude”, fala-se sempre de “problemas da juventude”, tais como: violência, irresponsabilidade, individualismo, falta de perspectivas de futuro.

Na verdade, não há sequer consenso em torno da definição dos limites de idade para a juventude. O mais comum é pensar na faixa de 15 a 24 anos, definição da Organização Internacional da Juventude e também opção utilizada em todas as análises demográficas. Entretanto, a unificação pela data de nascimento obscurece as diferentes maneiras de ser jovem nos distintos segmentos sociais. Ou seja, mesmo considerando a mesma faixa etária, restringindo-nos ao tempo presente e considerando os limites territoriais da nação brasileira, várias diferenciações internas recortam a juventude. O que faz a diferença?

• recorte de classe social (a grande desigualdade de renda é o indicador mais evidente das diferenças);

• recorte de gênero (ser um homem jovem – rico ou pobre – ou ser mulher jovem – rica ou pobre – faz diferença);

• recorte de cor (ser um(a) jovem rico(a)/pobre, negro(a)/branco(a) também faz diferença);

• local de moradia – nas grandes cidades, há uma geografia que explicita estigmas e distâncias sociais que diferenciam os jovens (ser um(a) jovem rico(a)/pobre; negro(a)/branco(a) e morar ou não na favela ou em áreas periféricas socialmente (des)valorizadas também produz diferenças de percepções e oportunidades).

• situação de responsabilidade frente à família – aqui entra estado civil, o ter ou não filhos e a questão de ser ou não “arrimo de família” (ser um(a) jovem rico (a)/pobre; negro(a)/branco(a); morar ou não na favela ou em áreas periféricas e ter já responsabilidades do sustento de outros também faz diferença).

Mas isto ainda não é tudo. Esses recortes podem também ter suas fronteiras reforçadas e/ou flexibilizadas a partir de outras variáveis que funcionam como demarcadores de identidades não só porque refletem a adesão a um certo conjunto de valores e referências culturais, mas também porque criam redes de sociabilidade específicas, como:


• grupos de orientação/opção sexual;

• identificação a partir de gosto musical ou estilo cultural;

• pertencimentos associativos, religiosos, políticos.

Portanto, recortes e variáveis atuam como produtores de múltiplas diferenças internas que indicam a necessidade de melhor qualificação quando se fala em “juventude atual” e, sobre ela, projeta-se um futuro desejável ou ameaçador da sociedade. Porém, com todos esses recortes e variáveis produtores de diferenças, o que haveria em comum entre os “jovens de hoje”?

Margulis (1996, p. 20) fala em “moratória vital”, como conceito complementar ao de “moratória social”. Afirma ele: “Terá mais probabilidades de ser jovem todo aquele que possua esse capital temporal como condição geral”. Estará falando de hormônios, adrenalina, corpo jovem predisposto para aventura, risco, crença de uma maior distância da morte? De fato, mesmo no interior das Ciências Sociais, há quem queira repor a dimensão biológica, outrora desdenhada. De meu ponto de vista, respeitando os limites da abordagem antropológica, creio ser importante considerar o fator biológico como representação. Os jovens – de todas as classes, cores, locais de moradia, gênero, orientação/opção sexual, religiões – parecem partilhar uma percepção (dominante em certas ocasiões e situações) de que “é preciso aproveitar a vida” e que eles têm “juventude” para isso. Isso explicaria por que, embora as estatísticas demonstrem que são os jovens os que mais matam e mais morrem no Brasil de hoje, sobretudo nas grandes cidades, “ser jovem” é combinar o gosto pela aventura, a predisposição para correr riscos com um sentimento de distância em relação à morte. Este paradoxo deve ser levado em conta quando se relaciona juventude/religião. Suas crenças e opções religiosas parecem estar mais para o “aqui e agora”, para manter e projetar a vida, do que para a preocupação com o destino após a morte.

Contudo, além do aspecto biológico, pode-se falar em três outros aspectos que hoje tecem uma experiência geracional comum1: as mudanças no mercado de trabalho, a violência urbana e a comunicação virtual.

A inserção em um mercado de trabalho mutante e a violência urbana são dois temas que – transversalmente – atingem todos os jovens2. É óbvio que tanto o risco em relação à violência quanto à desestruturação/flexibilização/precarização das relações de trabalho, enfim, o desemprego, subemprego ou emprego temporário, são fenômenos que atingem de forma diferente os múltiplos subconjuntos juvenis que delineamos acima. Que o digam os mais pobres, os mais negros, os moradores de certas áreas estigmatizadas, as mulheres. Mas uma das características deste “nosso tempo” é que os jovens de diferentes classes sociais podem vir a sentir insegurança sobre o trabalho futuro. A outra característica é: “ser jovem hoje” é sofrer – de alguma forma e em alguma medida – as consequências da violência urbana3. Agressores ou vítimas, todos têm medo, todos temem a polícia. Nas grandes cidades, ser jovem é ser suspeito.

Por outro lado, mesmo em cenário de aumento de desigualdades sociais, no dia-a-dia não é impossível que os jovens de diferentes classes sociais tenham acesso às mesmas informações – sobretudo via internet – sobre determinado assunto. Como se sabe, por meio da intensificação da velocidade das informações, adolescentes e jovens entram em contato simultaneamente com as dimensões locais e globais. Sabe-se que o contato não produz homogeneidade; cria possibilidades e diferenças, mescla universalidades e singularidades. Por exemplo, os “jovens de hoje” criam identidades em torno do rock, rap, reggae, sem que isso signifique aniquilação de outras diferenças sociais nas maneiras de ser jovem. Mas não há como negar que as conquistas tecnológicas, na verdade, modificam a comunicação, socialização, “visão do tamanho do mundo” entre gerações. Guardadas todas as diferenças de acesso e uso, a existência da internet não pode ser desconsiderada na análise do presente e do futuro dos nascidos há 15 ou 25 anos. Claro que estamos longe de uma “democracia de informações”. Mas as possibilidades tecnológicas, quando somadas aos pertencimentos demarcadores de identidades (gosto musical, grupos associativos, políticos e religiosos), ajudam a formar novos “subconjuntos” e a produzir outras experiências e marcas geracionais.

Em resumo, os jovens de hoje refletem as desigualdades existentes no país em termos de renda, acesso ao equipamento urbano e sistema educacional; sofrem e/ou atualizam preconceitos em relação à cor, ao local de moradia, à aparência, mas também constroem espaços culturais para outros e inéditos “encontros” entre zona norte/zona sul/zona oeste, asfalto/favela, como se diz no Rio de Janeiro, ou periferia e jardins, como se diz em São Paulo. Nestes encontros, os estilos, valores e comportamentos, socialmente em disputa, podem produzir identificação tanto entre jovens de um mesmo grupo social quanto entre jovens que dispõem de recursos e vivem condições sociais muito diferentes.

Regina Novaes

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* Esta é uma seção do texto “Juventude e Religião: marcos geracionais e novas modalidades sincréticas”, publicado em SANCHIS, Pierre (org.), Fiéis e Cidadãos – percursos de sincretismo no Brasil, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2001, pp.181-207.

1 - Segundo contagem populacional do IBGE de 1996, 78% da população brasileira e 78,6% dos jovens residiam em áreas urbanas. Nessa ocasião, o contingente entre 15-24 anos correspondia a 20% da população total das regiões metropolitanas. Houve um grande aumento deste grupo social, em termos absolutos, nos últimos 50 anos.


2 - No Brasil, segundo a contagem populacional de 1996, havia 31 milhões de jovens, dos quais mais de 20 milhões viviam em áreas urbanas. Registrou-se uma expressiva queda da taxa de fecundidade em relação à observada no censo de 1991, mas a geração que completou 20 anos no ano 2000 é uma das maiores da história brasileira. Fala-se em “onda jovem” para descrever o crescimento abrupto do número de adolescentes (em torno dos 17 anos). Esta onda se superpõe à da população na faixa dos 40 anos (os pais), produzindo impacto sobre emprego e pressão social.

3 - “Apesar das grandes diferenças existentes entre os jovens que habitam a cidade do Rio de Janeiro hoje, todos eles, independentemente de sua origem ou condição social, compartilham, no cotidiano, situações de violência”. Essa é uma das conclusões da pesquisa Fala Galera: Juventude, Violência e Cidadania na Cidade do Rio de Janeiro, realizada entre 1998 e 1999 com jovens de 14 a 20 anos, pertencentes a diferentes estratos socioeconômicos.